

por Miguel G. Arroyo
maio/2018
Propor analisar a relação entre Ética e Educação em um encontro de escolas, de educadores e educadoras traz interrogações a ser explicitadas:
- A formação ética da infância, da adolescência, da juventude faz parte da formação humana? Faz parte da Educação?
- De quem é a responsabilidade social, política, pedagógica da formação ética? Das famílias, das escolas, da docência, da sociedade, do Estado?
- A função das escolas, dos currículos, dos docentes seria apenas instruir, capacitar no domínio das competências necessárias ao domínio dos conhecimentos, das ciências…?
Há um certo consenso de que a educação e, sobretudo, a formação ética seria responsabilidade das famílias. Diante de alunos pensados como indisciplinados, sem valores de estudo, de trabalho, de disciplina é frequente às escolas acusar as famílias de não educá-los nesses valores. As escolas esperam que as famílias entreguem seus filhos bem educados nos valores, condutas necessárias para a ordem do trabalho escolar e do convívio social.
Que um grupo de escolas e de educadores e educadoras proponha refletir sobre a estreita relação entre ética-educação pressupõe reconhecer ser função política, pedagógica e ética das escolas e de seus profissionais assumir a formação ética como tarefa central.
Divido minha análise em duas partes. Na 1ª. Parte sugiro nos perguntemos como escolas, como docentes-educadores/as por que relacionar ética e educação-docência. Na 2ª. Parte sugiro avancemos perguntando-nos como, com que pedagogias formar sujeitos éticos.
1ª. PARTE
A formação do sujeito ético inseparável da história da Pedagogia
Uma das tarefas dos tempos de formação inicial e continuada dos docentes-educadores deveria ser aprofundar sobre como a formação do sujeito ético desde a infância tem acompanhado a história da Pedagogia. A Pedagogia carrega uma visão da infância: in-fans – não falante porque ainda não pensante. Acompanhar a formação do ser humano desde a infância tarefa da pedagogia, fazendo que pense, que seja sujeito de pensamento, de fala, de valores. Pensamento que oriente suas ações como humanos.
A Paideia se coloca como questão central: é possível formar o sujeito ético? Os valores são ensináveis? Que valores formar para ser sujeitos da Polis, para a participação política na construção humana da cidade? Todos os humanismos pedagógicos se colocaram como tarefa formar o ser humano desde a infância.
A pedagogia ilustrada se propunha que os seres humanos se atrevam a pensar para que o bem pensar guie o bem agir. Formar sujeitos éticos orientados pelo bem pensar. Priorizar o domínio de um conhecimento que oriente o sujeito ético. Será essa a preocupação dos currículos, das áreas do conhecimento, das escolas e de seus profissionais?
Lições-funções reafirmadas ao longo de toda a história da Pedagogia: a formação intelectual e ética desde a infância. Uma história reafirmada por todos os humanismos pedagógicos. Função nem sempre reafirmada nos currículos de pedagogia e de licenciatura, que privilegiam o ensinar-aprender-avaliar e secundarizam o educar, formar o ser humano, o sujeito ético desde a infância. Parabéns por um seminário que recoloca com centralidade a função da Pedagogia: a relação entre ética-educação.
1) Repor a formação ética no compromisso com a Formação Humana Plena
Na Constituição e na LDB se enfatiza que a função da educação é a garantia do direito dos educandos à Formação Humana Plena. Infelizmente essa dimensão tão radical do direito à educação-formação humana vai se perdendo no reducionismo das políticas que apenas reconhecem os educandos como sujeitos do direito a aprendizagens de conteúdos. Logo se reduz a função das escolas e dos docentes a dominar o que ensinar, o como ensinar e a como aprender os conteúdos.
As avaliações escolares, nacionais e o IDEB sintetizam e impõem essa visão reducionista do direito a aprender secundarizando o direito de todo cidadão, de todo ser humano à formação humana plena. Uma função reducionista das escolas que deixam de ser centros de garantia do direito à formação humana. Uma visão reducionista dos profissionais, não mais educadores dos complexos processos de formação humana, mas apenas ensinantes.
Que escolas e seus profissionais se reúnam para reconhecer a inseparável relação entre ética-educação é um indicador de que como escolas e como profissionais se reconhecem centros de formação humana plena, profissionais da educação e de ensino de conhecimentos que eduquem, preocupados com a formação humana plena dos educandos.
Este encontro já é a expressão de um compromisso ético-político-pedagógico com a formação humana plena dos educandos e com a função ética, política-pedagógica dos seus profissionais como educadores/as. Somente equacionaremos a relação ética-educação assumindo o compromisso como escolas e como educadores com o direito dos educandos à formação humana plena.
Uma pergunta obrigatória: que dimensões formar nos educandos para garantir seu direito à formação humana plena?
- A formação intelectual: aprender a pensar, reconhecê-los sujeitos de saberes, leituras de mundo, de si no mundo. O direito a saber-se, saber de si.[1]
- A formação cultural: a cultura matriz formadora, educadora. Reconhecer os educandos sujeitos de cultura. Dar maior espaço à cultura na formação dos educandos, à cultura na diversidade de linguagens. As artes como formas de conhecimento, os Artistas pensadores do mundo, do ser humano.
- A formação identitária de gênero, raça, classe. Na especificidade de cada tempo humano de formação: infância, adolescência, juventude, vida adulta.
Nessa pluralidade de dimensões encontra sentido a formação ética. Avançando desde crianças na formação humana dessa pluralidade de dimensões humanas nos formamos sujeitos éticos. A formação de cada uma dessas dimensões não é um processo isolado, mas são processos interligados de formação do sujeito humano. Pensar na formação ética exige pensar na totalidade dessas dimensões de formação humana, integral-integrada. Tarefa complexa que exige uma formação integral-integrada de educadores-educadoras. Exige um Projeto Político-Pedagógico-Ético de escola comprometida com o direito dos educandos à formação humana plena.
2) A formação ética na Pedagogia de Paulo Freire
Com quem aprender a centralidade da formação ética, humana? Aprender com Paulo Freire. Ele tem sido um dos educadores que mais tem insistido em que educar é humanizar. Uma pergunta obrigatória para os centros de educação e de seus profissionais: as infâncias-adolescências, os jovens chegam às escolas de processos de humanização? De processos de formação-deformação humana? Paulo nos recomenda a estar atentos: “O problema de sua humanização, apesar de sempre haver sido o seu problema central, assume, hoje, caráter de preocupação iniludível”. (FREIRE, 1987, p. 29). Por que a humanização se torna uma preocupação iniludível? Porque somos obrigados como educadores a reconhecer a desumanização… como viabilidade histórica… (p. 30).
Todas as lutas das famílias pela escola, pela educação são lutas por humanização, sobretudo em tempos de tantas desumanidades que afetam a todas as infâncias-adolescências ainda que com tão diversas intensidades. Fazer que todos, desde a infância, se desenvolvam como humanos. Esse o sentido do fazer educativo para Paulo Freire. Para as famílias a escola é pensada como um tempo mais humano, humanizador, esperança de uma vida mais humana.[2]
Paulo insiste: “O objetivo da pedagogia consiste em ajudar o ser humano em sua humanização… maturação para sua emancipação… A educação se baseia em uma relação entre seres humanos de maturidade desigual”.
As análises de Paulo Freire educador estão carregadas de valores. As tensões entre humanização-desumanização como realidades históricas, para Paulo, são tensões éticas. Esse um olhar pedagógico a aprender com Paulo Freire, se pretendemos assumir a relação entre ética-educação: que processos antiéticos de desumanização padecem as infâncias, adolescências com que trabalhamos? A desumanização rouba suas humanidades. Suas possibilidades de se formar como humanos, como sujeitos éticos. Com que Artes pedagógicas recuperar suas humanidades?[3] Logo educar como humanização para libertar da desumanização é uma tarefa ética. Nessa radicalidade repõe Paulo Freire as relações entre ética-educação-humanização-desumanização.
Sua postura pedagógica humanista, suas lutas por libertar da desumanização reafirmam o caráter ético de toda educação libertadora. Ser docente é assumir essa vinculação também entre ensino e ética. Paulo nos diz: “Nunca me foi possível separar em dois momentos o ensino dos conteúdos da formação ética dos educandos” (p. 106). Uma síntese do que este encontro se propõe? Articular ética-educação-ensino-docência.
A ética para Paulo Freire não é apenas uma postura pedagógica nas artes de educar-ensinar, a ética é uma das matrizes de toda humanização. A verdadeira educação como humanização só é possível a partir de uma ética do próprio ser humano. Logo não é suficiente educar para ser éticos, mas mostrar aos educandos que quanto mais éticos mais humanos e quanto mais humanos mais éticos. Lutar para que submetidos à desumanização se libertem e sejam humanos é a luta mais ética.
2ª. PARTE
Com que pedagogias articular ética e educação?
Como trabalhar entre nós docentes-educadores e entre os educandos o ser mais éticos para sermos mais humanos? Passo a destacar alguns dos processos educativos e como explorá-los como formação ética.
1) Reconhecer as famílias e os educandos sujeitos de valores
Os educandos e os educadores levam às escolas valores de suas vivências familiares. As famílias, os pais, as mães, avós, irmãos são sujeitos de valores. Desde a infância, no convívio familiar, vamos aprendendo, internalizando valores. Uma tarefa na relação ética-educação será dedicar tempos das equipes pedagógicas para mapear, entender que valores, que formação-de-formação ética levam os educandos às escolas. Sobretudo, dar mais importância a que valores levam.
A tendência das escolas é destacar os possíveis contravalores que levam os educandos das vivências das famílias. Predomina uma queixa nas escolas: as famílias não dão uma educação-ética. Superar essa visão tão negativa será uma forma de avançar para entender que educar em valores um ser humano é um processo complexo a ser dialogado, cooperado entre escola-família. Um exercício fecundo: lembrar a formação ética, os valores que carregamos de nossas famílias. Será mais pedagógico e mais ético no trato das famílias destacar que são sujeitos de valores.
Reconhecer as famílias e os educandos sujeitos de valores a ser reconhecidos e fortalecidos nas escolas. Será um caminho fecundo para captar esses valores que levam abrir tempos com as famílias, com as mães, sobretudo, para entender esses valores de que são sujeitos e em que educam os filhos. O diálogo escola-família tem dado mais importância aos processos de aprendizagem do que aos complexos processos de formação ética. Como abrir mais espaços para diálogos escolas-famílias sobre formação ética dos educandos?
2) Trabalhar os valores-contravalores que trazem da sociedade
As crianças, os adolescentes e jovens vivem na sociedade, recebem as notícias, os acontecimentos positivos, humanos ou negativos, desumanos de nossa sociedade. Acontecimentos, notícias por vezes com cargas maiores de contravalores do que de valores. Chegam às escolas como aprendizes forçados, obrigados a internalizar ou rejeitar muito cedo essa socialização forçada em valores-contravalores.
A relação ente ética-educação é vivida desde a infância em tensão com a sociedade. Como educadores-educadoras chegamos também às escolas com as marcas da sociedade vivida, obrigados a fazer escolhas dos valores-contravalores sociais, econômicos, políticos. Carregamos tensas vivências de ter de optar por valores, de resistir a tantos contravalores.
Um exercício obrigatório na relação ética-educação: partir de nossas vivências éticas para identificar os valores-contravalores da nossa sociedade, dos tempos atuais, como nos marcaram e como lutamos por libertar-nos. Entendendo-nos como sujeitos éticos em tensões com os contravalores da sociedade seremos capazes de fazer o mesmo processo com os educandos e com as famílias. Abrir tempos-espaços para que narrem suas tensões no acúmulo de valores-contravalores da sociedade que são obrigados a viver, incorporar ou rejeitar desde crianças.
Esses diálogos sobre os processos de socialização vividos como educadores/as, como educandos/as será já um processo rico de formação-educação ética. Será pedagógico reconhecer como tão cedo vivenciam tensões sociais de escolhas éticas. Valorizar nas famílias, em nós e nos educandos as resistências a optar por contravalores e as opções nada fáceis por valores. A construção do sujeito ético é extremamente tensa em uma sociedade antiética na economia. Na Política. Que valores, contravalores aprenderão nossos filhos, netos, jovens, adolescentes, crianças diante de negação política da ética de que são sujeitos políticos o Estado, os diversos poderes, a mídia, empresários? Nestes tempos de negação política da ética somos obrigados nas famílias, nas escolas à afirmação política da ética.
3) A formação intelectual como formação ética
Lembrávamos que a pedagoga ilustrada se propunha que os humanos se atrevam a pensar para que o bom pensar os guie como éticos. Há uma constante no pensamento pedagógico: acentuar a relação entre a formação intelectual e a formação ética. Essa relação pedagógica nos coloca questões de extrema relevância na afirmação da relação entre ética-educação: que formação docente, para entender essa relação entre formação intelectual e formação ética? Que currículos, que conhecimentos priorizar que carreguem as possibilidades de uma formação intelectual capaz de guiar os educandos a fazer opções éticas?
Questões nucleares quando escolas, docentes-educadores/as se propõem dar centralidade à relação entre ética-educação. Reconhecer que a formação ética é inseparável da formação intelectual. Não somos docentes em tempos em que transmitimos conhecimentos e somos educadores nos tempos em que damos bons conselhos, éticos.
Assumir ser docente-educador de saberes-conhecimentos e valores porque todo conhecimento em sua produção traz as marcas dos valores-contravalores sociais. Explicitar a nós docentes e aos educandos essa relação entre conhecimento e valores será um processo de educação intelectual e ética.
Logo, assumir como tarefa das escolas e dos seus profissionais que os educandos desde a infância se atrevam a pensar para ser éticos orientados por bons pensamentos que orientem suas condutas por valores? Dedicar tempos para analisar se tem sido essa a finalidade de tantas diretrizes curriculares, dos Parâmetros Curriculares, da Base Nacional Comum. Se tem sido essa a intenção dos currículos de licenciatura e do material didático.
O fato de escolas, educadores e dirigentes se colocarem como questão a relação entre ética-educação exige aprofundar na velha relação entre ética-conhecimento tão persistente na história da Pedagogia. Torna-se necessário abrir tempos-espaços de encontros dos docentes das diversas áreas do conhecimento para aprofundar nessa relação: que valores são inerentes aos conhecimentos que ensinamos? Todo conhecimento, toda ciência são produções sociais marcadas pelos valores dos coletivos, da sociedade que os produzem.
Explicitar esses valores em cada conhecimento que ensinamos será uma forma de relacionar ética e conhecimento. Logo, não separar tempos de transmissão ensino-aprendizagem de conhecimentos e tempos de formação ética, mas reconhecer que no ato de ensinar, no que ensinar, nos conhecimentos ensinados e aprendidos ensinamos e se aprendem valores. Se dá a formação ou deformação ética dos educandos e educadores. No relacionar ética-educação o que esperar das escolas e dos profissionais do conhecimento? Que os educandos desde crianças aprendam a pensar, aprendam conhecimentos que orientem seu agir ético.
Lições que vêm da história da Pedagogia e de todos os humanismos pedagógicos: formar o ser humano desde a infância. Pedagogia como Pediatria e infância são inseparáveis. In-fans não falante por que ainda não pensante acompanhado pela Pedagogia e pela docência para que se atreva a pensar, a participar na Polis, na vida social, política guiado por valores éticos orientados por um bem pensar. Mas que bem-pensar?
Assumir essa relação entre ética-educação-conhecimento exige das escolas repensar-reelaborar currículos, material didático, áreas do conhecimento, docência que deem centralidade a que todo conhecimento a ser ensinado-aprendido destaque e fortaleça os educandos e os docentes-educadores com saberes que os fortaleçam para um pensar-agir ético, não apenas no tempo-espaço-relacionamentos da escola, mas na cidade, nas famílias, nas relações sociais.
A formação do sujeito ético não se dá por repetir bons conselhos, mas por bons conhecimentos que orientem o bom agir. Uma tarefa para os tempos de formação continuada das escolas: repensar se as diversas áreas do conhecimento dão prioridade a que os educandos se atrevam a pensar para agirem como sujeitos éticos.
4) A organização das escolas – formadora ou deformadora?
Nos perguntamos com que pedagogias trabalhar ética e educação. Reconhecer os educandos sujeitos dos valores e contravalores vividos nas famílias, vividos na sociedade. Mas será necessário avançar e dar centralidade a trabalhar os valores, contravalores vividos nos tempos de escola. Não apenas perguntarmos se as relações sociais, familiares educam ou deseducam, formam ou deformam. A pergunta obrigatória para as escolas: a organização dos educandários incorporam valores-contravalores? Os percursos escolares marcam para sempre desde as crianças até os adultos que os experimentam. Os marcam em sua formação-deformação humana-ética, porque a organização escolar reproduz valores ou contravalores. Que dimensões da organização escolar trabalhar na relação ética e educação?
- Assumir que as instituições incorporam valores
O que educa ou deseduca em valores não é tanto os conselhos dados nem os conhecimentos ensinados, mas os valores-contravalores que a organização das instituições educativas incorporam. Tem sido frequente responsabilizar os docentes-educadores pela formação intelectual, cultural, ética, identitária dos educandos, desresponsabilizando a organização escolar e seus gestores pela educação-formação. Sua responsabilidade seria dar condições de trabalho para que educadores e educandos se formem.
Sugerimos reconhecer que não apenas as pessoas educam, mas também e, sobretudo, as instituições sociais, familiares ou escolares formam ou deformam enquanto instituições. Os gestores serão também educadores de valores, se organizarem e gerirem instituições pautadas por valores. As vivências dos tempos-espaços, relações, convívios nas instituições sociais e educacionais nos marcam como sujeitos éticos pelos valores-contravalores inerentes a sua organização. Uma pergunta obrigatória para ser aprofundada em coletivos de educadores e gestores das instituições educativas: que valores pautam a organização das instituições educativas? Que dimensões da formação humana dos educandos e educadores possibilitam ou dificultam?
Questões obrigatórias a ser discutidas em coletivos de gestores, educadores, famílias, educandos de escolas que buscam uma relação entre ética-educação. Será aconselhável avançar para algumas dimensões das instituições educativas e de sua gestão que formam em valores.
- A organização dos convívios e tempos humanos formadora de valores
As escolas são instituições que organizam convívios de pessoas, crianças, adolescentes, jovens, adultos. Como nos lembrava Paulo Freire, a educação como processo de humanização “se baseia em uma relação entre seres humanos de maturidade desigual”. Para Paulo, essa diversidade, desigualdade de maturidades entre docentes-gestores-educadores e educandos em tempos desiguais de maturidade: infância, adolescência, jovens, adultos não pode ser organizada como desigualdade e de tratos, de hierarquias.
Uma questão ética radical para a organização das escolas: administram as maturidades desiguais de educandos, educadores com valores de igualdade de direitos humanos ou reproduzem os valores de desigualdades que a sociedade produz entre os diversos tempos humanos. Relações de adultos, crianças-adolescentes como relações de autoridade, de superioridade-inferioridade?
Nada fácil às escolas libertar-se das antéticas desigualdades que a sociedade reproduz na organização dos tempos humanos dos convívios, das turmas, dos níveis, das séries. Pergunta obrigatória: que desigualdades marcam nossa sociedade e marcam os educandos desde a infância e chegam às escolas? As escolas na organização dos convívios conseguem não reproduzir essas antiéticas superioridades, desigualdades? Por exemplo, conseguem reconhecer as crianças como sujeitos de voz, de fala, de pensamento, de valores, de leituras de mundo, leituras de si mesmos no mundo ou ainda as infâncias são pensadas, tratadas como in-fans-sem-voz, sem-fala, sem pensamento? O mestre que fala, o aluno que cala, escuta, aprende?
A organização da educação na infância se debate com as concepções-visões-valores de infância que inspiram a organização das escolas e que predominam na sociedade. As tentativa de escolas, de gestores e educadores de superar visões inferiorizantes de infância-adolescência já é uma forma de articular ética-educação. Nada melhor para educar as crianças em valores do que valorizá-las como seres humanos plenos já na infância.
Toda visão e prática de desenvolvimento humano etapista, por aproximações com um ideal único de humano-adulto não é nem pedagógica, nem ética. Os estudos da infância têm avançado na superação da visão do desenvolvimento humano etapista que termina vendo as crianças, os adolescentes como inferiores, ainda não merecedores de reconhecimento como humanos. Outras visões da infância-adolescência e outra visão ética e pedagógica a ser incorporada na gestão dos convívios nas escolas.
- A organização das diferenças de gênero, raça formadora de valores
Sabemos como em nossa sociedade os tratos das diferenças de gênero, raça, etnia, classe são profundamente segregadores, opressores, antiéticos. Sabemos também como aumentam as resistências dos segregados contra essas desigualdades. Resistências políticas, éticas, educativas por libertação dessas desigualdades no trabalho, no poder, nas famílias, nas escolas e universidades.
Estudos mostram que a organização dos educandários tem reproduzido em sua organização essas desigualdades de gênero, raça, classe. Tem reproduzido os valores-contravalores que tentam legitimar essas desigualdades na sociedade. Aos educandários chegam das famílias, dos educandos e dos próprios profissionais da educação, chegam resistências por superar esses contravalores e afirmar nos convívios sociais, profissionais e escolares valores de igualdade de gênero, raça, classe.
Demandas de outra ética na organização escolar. Como priorizar essas tensões de valores de igualdade que chegam aos educandários? Uma exigência ético-pedagógica será entender, aprofundar sobre esses contravalores que vêm da nossa cultura social, política que reproduzem e legitimam as desigualdades de gênero, raça, classe.
Entendendo, aprofundando na compreensão desses contravalores será mais fácil entender e aprofundar as marcas desses contravalores que os educandos, as famílias levam às escolas. Será mais fácil rever se a organização escolar reproduz e onde, como, esses contravalores. Será pedagógico abrir tempos com as famílias sobre como lidam com essas desigualdades de gênero, raça, classe na organização familiar. Se educam os filhos para entender e não reproduzir essas desigualdades de gênero, raça na organização, no trabalho familiar. Se os educandos nas famílias não aprenderem valores de igualdade de gênero, raça será difícil às escolas reeducar esses contravalores. O diálogo ético familiar-educandários será fundamental.
Será necessário aprofundar nos tempos de formação inicial e continuada de docentes-gestores-educadores sobre como trabalhar, formar-nos como educadores-docentes-gestores para superar esses contravalores que legitimam e produzem as desigualdades de gênero, raça, classe com que chegamos e os educandos chegam às escolas. Sabemos que a inferiorização das meninas, das mulheres, dos negros, dos pobres nas escolas reproduz as inferiorizações de gênero, de raça, de classe tão arraigadas em nossa sociedade e até nas famílias.
Como não reproduzir essas inferiorizações nos convívios escolares? Como na relação ética-educação desconstruir esses contravalores inferiorizantes e como afirmar convívios, relações de igualdade? Nada fácil avançar para essa educação ética que supere contravalores de inferiorização de gênero, raça, classe em um sistema escolar longe de ser único, democrático, igualitário onde deveriam conviver se reconhecer, como iguais – ao menos em uma escola pública única – os tão diferentes em etnia, raça, classe.
Lutar por educar nos valores de igualdade não é uma tarefa fácil em uma sociedade e até em um sistema educacional tão polarizados em gêneros, etnias, raça, classes. Ao menos termos consciência dos limites a superar quando escolas se propõem dar centralidade à relação ética-educação. Ao menos não reproduzir essas desigualdades antiéticas nas escolas, nas relações de trabalho.
- A organização do trabalho formadora de valores
Coloquemos mais uma dimensão centralíssima na organização das escolas e nos valores que a inspiram: que valores orientam a organização do trabalho dos educando e dos educadores-trabalhadores na educação? Temos insistido nas escolas como lugares de ensino-educação, formação intelectual-ética. Temos insistido menos em ver as escolas como lugares de trabalho. Em ver os educandos como trabalhadores e, sobretudo, reconhecer os docentes-educadores como trabalhadores. A pergunta nuclear: educandos-educadores trabalhadores, mas em que relações de trabalho? Relações éticas-formadoras ou antiéticas, deformadoras de trabalho?
As teorias pedagógicas vêm reconhecendo o trabalho como princípio educativo, como a matriz pedagógica mais formadora do ser humano. Mas também os estudos do trabalho de adultos, jovens ou crianças como processo deformador porque desumano.[4] O trabalho desde a infância-adolescência é inseparável do pertencimento de classe, raça, gênero, mas as vivências do trabalho dos adultos, pais, mães, empregadas domésticas é uma das vivências primeiras desde a infância. Vivências do padrão de trabalho que prevalece em nossa sociedade: padrão machista, sexista, racista, classista legitimando em contravalores em que são socializados/as as crianças-adolescentes, jovens que chegam às escolas.
Uma das funções dos conhecimentos será mostrar esses contravalores segregadores do trabalho. Os currículos, as áreas do conhecimento, o material didático, até a Base Nacional Comum ignoram, secundarizam trabalhar, mostrar essas relações, esse padrão de trabalho machista, sexista, racista, classista com que desde bem cedo as crianças, adolescentes convivem e para o que são formados.
Uma pergunta obrigatória: há lugar nos currículos de formação de educadores e de educandos para entender, trabalhar que valores-contravalores perpetuam esse padrão de trabalho que já desde crianças vivenciam nas famílias, na sociedade?
Há uma questão ética-pedagógica ainda mais desafiante: que valores-contravalores inspiram, legitimam a organização do trabalho nas escolas? Como, com que valores são tratados os direitos dos trabalhadores na educação? A organização do trabalho docente-educador nas escolas não reproduz os contravalores do padrão de trabalho machista, sexista, racista? A feminização do magistério não reproduz o “valor” de que cuidar, educar a infância, adolescência é trabalho de mulheres não de homens? Somos obrigados a perguntar-nos para entender a relação ética-educação se é educador ou contraeducador que crianças e adolescentes não reconheçam os homens como seus educadores? É educador que crianças e adolescentes vivenciem tão cedo o padrão sexista de trabalho até na educação escolar? É educador que a maioria das professoras sejam brancas e que as professoras-educadoras negras sejam tão poucas? Sabemos como em nossa sociedade as mulheres negras ocupam funções auxiliares até de trabalho, de cuidado e até de educação. Como avançar para uma organização do trabalho nos educandários em que as crianças, os adolescentes aprendam, vivenciem o valor da igualdade de gênero e da igualdade racial? Tarefa nuclear para avançar na relação entre formação ética e educação.
Há uma outra vivência escolar cada vez mais frequente nos educandos das escolas privadas e públicas: Não há escola porque os professores estão em greve. O aprendizado das resistências e lutas pelos direitos do trabalho entre os pais, mães trabalhadores/as e entre seus professores, professoras são lições éticas que aprendem muito cedo nas condições de trabalhadores nas famílias e nas escolas.
Uma pergunta obrigatória: que valores aprendem tão cedo sobre o trabalho, sobre os direitos do trabalho? Como dar centralidade na relação ética-educação a essa educação em valores que os trabalhadores, as trabalhadoras na família, na cidade, na sociedade, nas escolas lhes ensinam desde a infância?
Se o trabalho é a matriz primeira de nossa formação humana-ética as resistências e lutas por direitos do trabalho terão de ser reconhecidas, trabalhadas desde a infância-adolescência como processos determinantes da relação entre ética-educação.
Tomemos consciência, escolas, educadores/as, se educa mais nos grandes valores humanos, lutando por direitos, ensinando a lutar por direitos do que dando bons conselhos moralizantes.
REFERÊNCIAS
ARROYO, M.; VIELLA, M.A.L. & SILVA, M.R. (Orgs.). Trabalho-Infância: Exercícios Tensos de ser Criança. Haverá Espaço na Agenda Pedagógica? Petrópolis: Vozes, 2015.
ARROYO, M. Currículo, Território em Disputa. Petrópolis: Vozes, 2011.
ARROYO, M. Imagens quebradas: trajetórias e tempos de alunos e mestres. Petrópolis: Vozes, 2004.
ARROYO, M. Ofício de mestre: imagens e autoimagens. Petrópolis: Vozes, 2000.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
*Miguel Arroyo é Doutor em Educação pela Stanford University. Professor Titular Emérito da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor Honoris Causa da Universidade Federal Fluminense (UFF).
[1] Trabalho esse direito a saber-se no livro “Currículo, Território em Disputa”, Vozes, 2011.
[2] Trabalho esta ênfase de Paulo Freire com a educação como humanização no livro “Ofício de Mestre”, p. 23 e ss., Vozes, 2000.
[3] Trabalho essas questões no livro “Imagens Quebradas”, Vozes, 2004.
[4] Trabalhamos essas dimensões formadoras-deformadoras do trabalho no livro “Trabalho-Infância”, Vozes, 2015.