

Por Adriane de Oliveira e Silva
“Merece ser um professor o homem que descobre o novo ao refrescar na sua mente aquilo que ele já conhece”.
Confúcio. Os Analectos.
A narrativa do Mito da Caverna, de Platão, apresenta prisioneiros que, desde o nascimento, são acorrentados no interior de uma caverna. Nela apenas enxergam uma parede, iluminada por uma fogueira, onde é projetado imagens de estátuas de seres humanos, animais e plantas, manipuladas para representarem o cotidiano desses seres.
Na sequência da alegoria, quando um dos prisioneiros sai do cativeiro e investiga o interior da caverna, percebe que passou toda sua vida analisando apenas sombras e ilusões. Durante todo o tempo que passou ali, não conseguiu demover o olhar das sombras, das ilusões. Ao se ver fora da caverna, enxerga as maravilhas que o mundo real lhe oferece. Não demora a perceber que o mundo tem mais qualidades do que a caverna lhe mostrara.
Maravilhado pela realidade e pelo conhecimento que então passara a ter, o ex-prisioneiro desce à caverna para contar aos seus amigos sobre o novo mundo que descobriu. No entanto, como os prisioneiros não conseguem vislumbrar a vida fora da caverna, para além da realidade que presenciam, debocham do colega liberto, dizendo-lhe que estava louco e por isto, diante de tanta sandice, desejam matá-lo.
Nessa alegoria de Platão, a caverna representa o mundo limitado em que vivem os seres humanos, e o estado de isolamento significa a dificuldade humana de questionar a realidade, refletir além daquilo que julgam conhecer.
Com o objetivo de explicitar o sentido da educação como um processo de desenvolvimento da capacidade humana de explorar o mundo, compreender e refletir sobre a realidade transformando-a, buscarei fazer um paralelo entre essa alegoria e os desafios enfrentados no dia a dia da escola. Desafios que nos convidam a olhar para fora da caverna.
Sair da caverna, das nossas cavernas interiores, é um movimento de abrir para o novo, para a transformação, para o múltiplo, para a capacidade humana de recriar, de relacionar, de interagir e reaprender. Assim, como os prisioneiros do mito de Platão, cada um de nós tem o medo como companhia. Temos medo do desconhecido, do que nos estranha, do diferente, do que foge ao nosso controle, da desordem, da complexidade.
Presente também na educação, este medo do novo, do inesperado, é fator determinante na construção de uma certa cultura nas escolas, dotada de pré-conceitos, receitas e planos anódinos de ação que, por meio do suposto saber institucionalizado, dificultam a realização de uma prática pedagógica interativa, na busca de sentidos para o aprender.
E foi a partir da necessidade de conversar sobre os nossos valores e ideias, que a equipe de educadores da Escola Balão Vermelho se propôs a recriar o modo de receber os pais dos alunos, no 1º semestre de 2018, para, com eles, exercitar o diálogo, no sentido mais próximo do termo: o de valorizar a circulação das palavras e das ideias.
Nesse contexto, as palavras de Confúcio, ”Merece ser um professor o homem que descobre o novo ao refrescar na sua mente aquilo que ele já conhece”, nos instigaram a rever a forma de nos reunirmos com os pais. Refutando as “aulas” de explicações e justificativas, partimos para rodas de conversas, capazes de nos aproximar das premissas do pensamento filosófico sobre o diálogo. Falar com o outro é escutar o outro dentro de nós, é estar disponível para a travessia de ideias, para a escuta do entre existente no movimento da ida e vinda das palavras, na interação com os nossos outros.
Willian Desmond (1990) também nos ajudou nessa reflexão. De acordo com esse autor, não existe “filosofia pura”; o pensamento filosófico não pode apenas pensar-a-si-mesmo, mas tem que se abrir para uma intermediação respeitosa com os outros, conservando o diálogo como fonte de maior interesse para construção desses espaços de encontro com os “seus outros”.
Recorro aqui a Dewey (1978), para evidenciar o termo interesse como aquela experiência que nos liga de fato, ao desejo de estar presente naquilo que nos propomos.
O termo parece significar, na raiz profunda de sua ideia, estarmos empenhados, fascinados, completamente absorvidos em alguma coisa, por causa do seu mérito para nós. A própria etimologia do termo interesse, ‘estar entre’, não diz outra coisa. (DEWEY, 1978, p. 71).
A fim de compreender a relevância de uma educação em que os alunos aprendem a escutar e ser ouvidos por seus pares; a desenvolver habilidades para comunicar-se, para colaborar com o outro, a pensar criticamente e a desenvolver a criatividade, iniciamos as rodas de conversas com os pais, apresentando a eles variados depoimentos dos nossos alunos a respeito dos saberes construídos na escola e na vida. A seguir, os depoimentos que julgamos serem os mais relevantes:
- “Na escola eu aprendo a respeitar a vontade do outro, as pessoas a minha volta, a educação ao planeta. Eu aprendo a saber ganhar, saber perder e outras pequenas coisas para ser feliz”
- “Aprendo respeito, trabalho duro e compaixão”.
- “Errar de propósito não é bom, obviamente, mas em muitas outras vezes errar ajuda a saber a melhor opção e até conhecer a si mesmo, sobre o que você gosta, ou não gosta, o que é ou não é bom para você”.
- “Na escola aproveito a vida porque um dia ela acaba”.
- “Com o amigo, nós aprendemos a falar algo ruim sem magoar”.
- “Na escola não aprendemos só as matérias, a escola ajuda também a resolver problemas fora e dentro dela. A escola me ajudou a ser mais independente”.
- “Aprendi espírito de equipe. Aprendi a pular corda, a entrar na corda e sair”.
- “O bom é termos opinião”.
- “Eu aprendo muitas coisas tanto com os colegas quanto com professores. Vejo diferentes jeitos de pensar e de enxergar as coisas. Vejo diferentes opiniões por diferentes razões”.
- “Conviver é bom; as vezes é andando de bicicleta com os amigos, outras vezes é sentando em grupo na sala. É sempre bom ter alguém para ajudar a gente quando machucamos…”
- “Me sinto mais viva na escola, pois sempre tem o novo”.
- “Convivendo é bom porque aprendemos coisas novas que os outros aprenderam e os outros aprendem com a gente. Uma troca de figurinha da mente”
- “Eu acho que eu sou bom na matemática, em catar lápis, tesoura, cola e borracha que caíram no chão. Eu acho que eu sei ler muito, eu acho que sei colorir e desenhar bem e explicar bem sobre as coisas”.
- “Eu sou boa para arrumar e organizar as coisas. Também sou boa para resolver brigas e problemas”.
- “Eu sou bom no futebol, a fazer vitamina de banana, no jogo da memória, fazer brigadeiro e arrumar a cama”.
- “Eu tenho que aprender a ouvir”…
Com os pais, abrimos um diálogo sobre o que avaliamos, em diferentes graus, sobre a relação entre o conhecimento e as habilidades em utilizá-lo na vida cotidiana, de modo que se reforcem mutuamente, construindo comunicação e atitude, promovendo, com sucesso, a transferência do aprendizado para novas situações.
Investigar a realidade, criar soluções para um problema, saber utilizar o conhecimento adquirido em situações reais de vida são, a meu ver, o que favorecerá a saída da “caverna’.
Ao analisarmos as respostas dos alunos diante da pergunta, -“o que você aprende na escola”, percebemos a presença da relação entre o conhecimento e sua aplicabilidade em situações de vida; na construção da vida social do aluno.
Dessa forma compreendemos o significado de Educare. Sair para fora.
Como exemplo, nossos alunos, ao lerem informações que indicam o tempo de exposição das crianças à mídia e consequente consumo, decidem averiguar tais dados por meio de uma pesquisa na escola. Outros, ao conhecerem mais de perto o trabalho dos catadores de lixo, compreendem a função social dessa profissão e passam a reconhecê-los nas ruas da cidade. Ainda outros se organizam para participar de reuniões de condomínios com o objetivo de discutir sobre a reciclagem do lixo em suas moradias.
Retomando as considerações iniciais, vale elucidar algo a mais sobre o mito de Platão.
Não será este um dos maiores propósitos da educação? Tornar compreensível que as “cavernas” fazem parte de algo interno a nós, necessário de ser rompido por meio do refrescar das ideias, povoando nossos saberes com as vozes dos outros, nessa infinita espiral do conhecimento?
*Adriane de Oliveira e Silva é Coordenadora Pedagógica do
Ensino Fundamental I, da Escola Balão Vermelho.
Referências Bibliográficas:
DESMOND, Willian. A filosofia e seus outros modos do ser e do pensar. São Paulo: Edições Loyola,1990.
DEWEY, John. Vida e Educação. 6. São Paulo: Editora Melhoramentos, 1978.
Relatos dos alunos do Ensino Fundamental I, da Escola Balão Vermelho, sobre suas relações com o saber, 2018.