

Por Isabel Fabris – Coordenadora de Língua Estrangeira da Escola Parque, Mestre em Linguística Aplicada pela UFRJ e Doutora em Estudos da Linguagem pela PUC-Rio
“Me movo como educador, porque, primeiro, me movo como gente.”
(Paulo Freire)
Introdução
Desde que as Leis de Diretrizes e Bases de 1961 e 1971 retiraram as línguas estrangeiras do currículo obrigatório das disciplinas, expandiu-se a ideia de que as escolas não tinham condições de ensiná-las, proliferando, assim, os cursos de idiomas. Vários fatores eram apontados para justificar a impossibilidade de se ensinar línguas estrangeiras nas escolas, e mais ainda na escola pública. Dentre as precariedades elencadas estavam o número de alunos em sala, a falta de condições materiais e estruturais e o despreparo dos professores para enfrentar essas condições. Essa alegação contribuiu para muitos mitos e equívocos sobre a aprendizagem das línguas estrangeiras, que perduraram por muitas décadas.
Desse modo, no momento em que se eximiu a escola do compromisso de ensinar línguas estrangeiras, os cursos de idioma passaram a ser o lócus prestigiado de ensino dessas línguas, que, por questões financeiras, eram acessíveis apenas a uma parcela da população, i.e a parcela que pode pagar. Ou seja, a língua estrangeira se tornou mais um promotor de desigualdade de oportunidades em nosso país. Uma vez decretada a impossibilidade de ensinar essas línguas e, principalmente, o inglês – uma língua reconhecida como um diferencial por sua abrangência e presença no mundo -, as escolas se viram livres dessa obrigação. Porém, à medida que surgia a demanda pelo idioma na sociedade, um grande número de escolas optava por terceirizar o seu ensino, livrando-se assim do compromisso de entender os processos de ensino-aprendizagem associados à língua estrangeira. Ou, em alguns casos, a língua constava currículo escolar, porém, sem grandes pretensões em relação aos seus resultados. Tudo isso corroborado pela sociedade, que, por sua vez, atribuía aos cursos as condições ideais para ensinar idiomas com eficiência. Com isso, nas escolas, o desprestígio da língua inglesa e de seus professores era sentido dentro e fora da sala de aula.
Nas escolas públicas, esse demérito das línguas estrangeiras era ainda maior, e ainda o é, na maioria delas. E a pior alegação para justificar a inexistência de um projeto de ensino de inglês nesses contextos educacionais é a afirmação: “Eles não falam nem português, quanto mais inglês” (MOITA LOPES, 1996). Assim, além da depreciação dos seus alunos, considerados inaptos, o discurso da ineficiência do ensino do idioma nessas escolas passou a ser entoado aos quatro cantos, da comunidade escolar à sociedade de modo geral.
De um modo semelhante, mas nem tão drástico, nas escolas particulares, quando o inglês constava do seu currículo, a carga horária era muito reduzida, e os seus professores amargavam total desprestígio de sua função. Por também não verem condições de ensinar bem o idioma no nas escolas, optavam sempre por enfatizar a gramática e, quando muito, uma leitura instrumental, retirando a oralidade do seu cardápio. Tudo isso corroborava a visão do senso comum de que na escola não se aprende inglês. Não raro ouvíamos crianças afirmarem isso, certamente contaminadas pela avaliação das famílias e do seu entorno. Hoje, porém, com a crescente valorização da aprendizagem do idioma. Ganham maior visibilidade e reconhecimento as escolas bilíngues e as internacionais. Porém, pouco a pouco, as demais escolas regulares de língua materna que estão de fato apostando na importância da aquisição de uma língua estrangeira (ou língua adicional) começam a mudar esse quadro de desconfiança e descrença. Ou seja, se a escola confia, aposta, abraça, acolhe, as coisas acontecem.
E, é neste contexto, neste momento, que as escolas ‘Critique’ estão se debruçando sobre o ensino de língua estrangeira, ouvindo os profissionais da área e abrindo espaço para o diálogo entre a língua estrangeira e os conhecimentos que privilegia, fazendo surgir uma proposta nova: nem uma escola bilíngue, nem tampouco uma escola monolíngue. O que se pretende é uma escola de línguas e linguagens, que se coloca de forma criativa, partindo do bilinguismo e mulitlinguismo para o translinguismo.
Vale dizer que esta noção, translinguismo, centra-se nas práticas dos sujeitos e não em suas línguas. Defende a visão de que os sujeitos multilíngues não pensam em apenas uma língua e, sim, além das línguas, usando recursos cognitivos e semióticos como forma de maximizar o seu potencial comunicativo e a sua interação com o mundo. Daí a importância do ensino da língua estrangeira e também de um ensino para linguagens.
Por que o inglês?
Nas últimas décadas, no mundo de contração do espaço, tempo e fronteira em que intensificam interdependências e trocas sociais no nível mundial, e também em que o meio de comunicação global é o inglês, a língua inglesa tornou-se imperativa. Rajagopalan (2005) afirma que cerca de 80 a 90% da divulgação do conhecimento científico no mundo ocorre em inglês. Por essa razão, diz ele “quem se recusa a adquirir um conhecimento mínimo da língua inglesa corre o perigo de perder o bonde da história” (p. 149). É nesse sentido que Pennycook (1995, p.78) afirma que “o inglês está no mundo e o mundo está em inglês”. Porém, o sociolinguista, ao contrário de propor a reprodução dos discursos que promovem os ideais do ocidente, sugere que a apropriação desse idioma deve contribuir para a produção de contra discursos que questionem esses ideais.
O inglês adquiriu, portanto, o status de uma língua que conecta pessoas e saberes; uma língua global, internacional ou, ainda, uma língua franca, uma vez que é o meio de comunicação escolhido entre falantes de diferentes línguas maternas (SEIDLHOFER, 2011), e que, por isso, está sujeita a adaptações a cada apropriação. Hoje a maior parte dos falantes dessa língua não é ‘nativo’, o que nos leva a dizer que o inglês se desterritorializou.
Nesse contexto, cresce a demanda pelo ensino do idioma e, com isso, as escolas são convocadas a assumir a responsabilidade de ensiná-lo. Sabemos que no Brasil uma parcela muito pequena da população fala inglês. Com essa virada, no entanto, espera-se democratizar o acesso ao idioma. E, com isso, surge a necessidade de se reestruturar os cursos de formação de professores de inglês, e refletir sobre a visão de língua, antes percebida como um sistema, centrada nela mesma, nas suas regras, ou seja, uma língua sem sujeito. É preciso, então, definir o conhecimento da língua em termos de repertórios comunicativos, moldados por práticas particulares, às quais as pessoas se engajam (HALL etal., 2006, p. 232). A língua não é um sistema abstrato que usamos para comunicar, mas sim uma atividade social, da qual a comunicação faz parte.
Desse ponto de vista, o inglês não é uma língua essencializada, pura, de uma só pátria. É, pois, um idioma passível de ser habitado por nós e por outros, aqui e acolá, por meio do qual podemos imprimir as nossas identidades, adaptando-o aos traços de nossa língua mater e ao nosso modo de nos expressarmos. Nem é tampouco um projeto monolíngue, pois há muitas versões dessa língua no mundo. Assim, a cada apropriação que se faz dela, ela surge com uma nova forma, e, desse modo, se torna, uma língua a ser vista em um contexto de outras, i.e uma língua sempre em processo de tradução, como propõe Pennycook (2008).
Formação de Professores
Neste momento, uma questão que se impõe é a formação dos professores de línguas estrangeiras. Essa formação deve enfatizar uma nova concepção de ensino-aprendizagem, linguagem, sociedade, conhecimento, interação e comunicação. Uma prática em que se entende a língua como mediadora dos eventos e das interações sociais, sem, contudo, esquecer que a língua estrangeira é uma língua a ser aprendida, ao contrário da língua materna que é a língua que se sabe. É preciso, no entanto, situar essa língua social e culturalmente, para que ela possa ser muito mais do que uma abstração, mas uma língua enunciada por sujeitos social, cultural e historicamente situados. Isso, inevitavelmente, leva ao questionamento da ideia de que a aprendizagem de uma língua estrangeira se dá exclusiva e fundamentalmente por meio da aquisição de competências (linguística, discursiva, cultural, intercultural). Coloca, outrossim, no centro da aprendizagem, o uso social da língua, as práticas das quais as pessoas participam e nas quais elas se inserem.
Desse modo, é imperativo que o mundo social faça parte do programa de ensino de línguas estrangeiras, que o seu ensino seja um programa de educação de línguas e linguagens. Essa concepção exige, portanto, novas ações pedagógicas, e, em última instância, uma formação ampla de profissionais mais inseridos nos processos de aprendizagem e nas questões da atualidade. A tarefa é possibilitar que os profissionais de ensino de línguas estrangeiras se engajem no processo educativo, de modo reflexivo, ao contrário de serem apenas detentores do conhecimento do idioma, presos aos modelos tradicionais e formais de ensino, muitas vezes se posicionando de forma colonizada e acrítica, agindo como reprodutores dos valores culturais dos países hegemônicos da língua alvo e dos conteúdos dos livros didáticos.
Há, portanto, a necessidade de uma formação centrada nas práticas e na reflexão sobre as línguas e a importância de nos desprendermos dos modelos muito teóricos e muito formais, como propõe Novoa (2007). É preciso valorizar a formação prática e cultural dos professores, seu interesse pela vida social, pelos sujeitos sociais, pelos compromissos éticos e transformadores da educação. Os professores de línguas devem se interessar pelas linguagens e estar atentos aos discursos que circulam na sociedade e às transformações pelas quais ela atravessa, ressignificando-os e ressignificando-se sempre.
Contribuições
Com tudo isso, vale ressaltar que as demandas que se colocam para as escolas são grandes. Há uma série de adaptações e ajustes a serem feitos. Porém, esta é uma virada fundamental em termos conceituais e práticos.
“Assim, neste momento, as escolas ‘Critique’ se posicionam de maneira crítica e questionadora, demonstrando uma enorme capacidade de promover uma virada linguística. São elas instituições educacionais com vocação para a linguagem, para o diálogo e para a escuta. Têm o desafio como norma, sempre dispostas a experimentar mudanças. São bastante permeáveis, engajadas e interessadas nas práticas e contextos sociais, dentro e fora do seu território. Abertas a pesquisas e ao fazer acadêmico, desejam inaugurar uma nova dinâmica tanto no ensino da LE (ou LA), quanto na formação de professores dessas línguas.
“É importante, pois, pensar no poder multiplicador de um trabalho de educação de tamanha potência. Assim, em um país profundamente desigual como o Brasil, as mudanças que essas escolas ousam empreender, as inovações a que se propõem, enfim, todos os seus engajamentos inspiram direta e indiretamente outras realidades educacionais no país, convocando-as a assumir o compromisso de tornar disponíveis aos alunos os bens culturais essenciais, ampliando assim os horizontes das novas gerações.
As escolas que formam o grupo ‘Critique’ têm grande importância no cenário educativo nacional, seja porque dialogam com muitos segmentos da sociedade, seja porque incorporam muito rapidamente, nos seus programas de ensino, os discursos e práticas que visam transformar o pensamento, o modo de agir no mundo, enfrentando corajosamente os desafios que se apresentam. Estão atentas às práticas sustentáveis, às questões dos excluídos, à luta contra preconceitos, aos avanços tecnológicos, aos movimentos sociais, à produção acadêmica, às expressões artísticas, à literatura, ao pensamento crítico e reflexivo, à ética e à alteridade.
As escolas ‘Critique’ dedicam-se não só a reflexões e trocas de experiências entre si, mas também a uma proposta de transformação do nosso país pela via da educação. Convidam crianças, jovens, famílias e seus profissionais a questionar e a pensar criticamente. Estimulam os alunos a explorar e narrar o mundo do qual fazem parte. Realizam, assim, o enlace entre teoria e prática no seu fazer pedagógico cotidiano, pois sabem bem que “a teoria sem a prática vira ‘verbalismo’, assim como a prática sem teoria, vira ativismo” (…) e, ainda, que “quando se une a prática com a teoria tem-se a práxis, a ação criadora e modificadora da realidade” (FREIRE, 1989, p.67).
Em relação às línguas estrangeiras, as escolas ‘Critique’ se debruçam sobre teorias e práticas consoantes com o seu fazer pedagógico, para que possam cumprir a sua função na formação dos alunos. Assumem sua posição: nem bilíngue, nem monolíngue. Inauguram, assim, um verdadeiro projeto de linguagem, não apenas de línguas, mas fundamentalmente um projeto de translinguismo.
Considerações finais
O tempo da invisibilidade acabou. As fronteiras são hoje espaços dinâmicos, de muitos fluxos culturais. O filósofo austríaco, Wittgenstein (1889-1951), afirma: “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Assim sendo, é importante expandir as fronteiras para que se possa acessar o mundo de diversos modos. Por isso, ao invés de pensarmos no inglês como a língua do imperialismo, do dominador e do colonizador (PHILLIPSON, 1992), que nos foi imposta e, por isso, nos aprisiona e submete, por que não nos apropriarmos dela como um recurso de transposição e atravessamentos? Afinal, aprender uma língua estrangeira nos desafia a nos confrontarmos com o outro que nos habita, nos dando a possibilidade de cruzarmos fronteiras ao encontro de outras realidades.
Referências Bibliográficas
CANCLINI, N.G. (1999). ‘Consumidores e Cidadãos: conflitos multiculturais da Globalização’. 4ª ed., Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, p. 292.
CANEVACCI, M. (1996). ‘Sincretismos: uma exploração das hibridações culturais’. São Paulo, Studio Nobel, p. 104.
HALL, J; Carlson, M. (2006). ‘Reconceptualizing Multi Competence as a Theory of Language Knowledge’. Applied Linguistics, 27 (2), 220–240.
FREIRE, P. (1989). ‘Educação Como Prática da Liberdade’. Ed. Paz e Terra
MOITA LOPES, L. P. (1996). ‘Oficina de Linguística Aplicada: a natureza social e educacional dos processos de ensino-aprendizagem de línguas’. Campinas: Mercado de Letras.
NÓVOA, A. ‘Desafios do Professor no Mundo Contemporâneo’. São Paulo: SINPRO-SP, 2007. Disponível em: Acesso em: 10 abr. 2015.
PENNYCOOK, A. (1994). ‘The Cultural Politics of English as an International Language’. London, Longman, p. 365.
PENNYCOOK, A. (2008). ‘Translingual English’. Australian Review of Applied Linguistics, International Forum on English as an International Language, special forum issue, edited by Sharifian, Farzad; Clyne, Michael. 31 (3): pp. 30.1–30.9. DOI: 10.2104/aral0830.
PENNYCOOK, A. (2008). ‘English as a Language Always in Translation’. European Journal of English Studies, 12:1, 33 – 47. To link to this article: DOI: 10.1080/138255708019005.
PHILLIPSON, R. (1992). ‘Linguistic Imperialism’. Oxford: Oxford University Press.
RAJAGOPALAN, K. (2005). ‘A geopolítica da língua inglesa e seus reflexos no Brasil: por uma política prudente e propositiva’. In: K. Rajagopalan & Y. Lacoste (eds.). A geopolítica do Inglês. p. 135-159. São Paulo: Parábola Editorial.
SEIDLHOFER, B.(2011). ‘Understanding English as a Lingua Franca’. Oxford: Oxford University Press.
ORTIZ, R. (2006). ‘Mundialização: saberes e crenças’. São Paulo, Brasiliense, 214 p.
WITTGENSTEIN, L. (1968). ‘Tractatus Logico-Philosophicus’. Trad. José Arthur Giannotti. São Paulo: Companhia Editor Nacional / Editora da Universidade de São Paulo.