

Por Sonia Barreira, diretora pedagógica do Critique
Se um cineasta vai fazer um filme, você acha que ele deve escrever o roteiro primeiro e depois pensar no cenário ou deve definir o cenário e depois escrever o roteiro?
Foi com essa pergunta que o professor Juan Puig me mostrou, há muitos anos atrás quando o conheci, como a organização para o trabalho pedagógico na Escola Sunion, em Barcelona, é mais lógica do que aquela organização clássica que todos nós conhecemos.
O usual é uma estrutura temporal fixa, que se repete da mesma maneira, semanalmente, ao longo de todos os dias do ano letivo. Alunos sempre agrupados por idades iguais, em turmas homogêneas, de 20 a 40 participantes. Ou, como comparou o professor Puig, “um cenário fixo para que os professores escrevam roteiros diferentes de aulas”. Desafio complexo!
Uma outra tendência de padronização nas escolas, especialmente quando se trata de jovens adolescentes, é separar em turmas distintas aqueles que são muito amigos e próximos. Isso é feito para evitar que se distraiam ou que se envolvam com temas estranhos aos estudos, ou ainda para que não se habituem a trabalhar apenas com quem já têm afinidades.
As unidades temporais (as aulas ou tempos) variam de escola para escola mas habitualmente duram de 45 a 60 minutos. A montagem do horário regularmente depende dos dias em que os professores estão naquela escola, pois normalmente o especialista atua em mais do que uma instituição educacional.
Pois essa forma de organizar o trabalho escolar está tão arraigada em nossas escolas que costumamos naturalizar este cenário e, por isso, foi uma grande surpresa para todas as plateias ouvir as apresentações que o professor Puig fez no Brasil sobre a Escola Sunion no último mês.
Como ex-diretor dessa famosa escola catalã, ele pode nos mostrar em detalhe como o modelo pedagógico se baseia justamente numa organização que rompe com toda essa lógica de padronização excessiva.
Basicamente, a proposta pedagógica que torna essa escola um projeto singular rompe, há quase cinquenta anos, com todos os paradigmas da organização do trabalho escolar, especificamente no que se refere a gestão do tempo, dos agrupamentos, materiais curriculares de apoio e dos espaços de aula. Vale destacar dois pontos essenciais que estruturam toda a lógica do sistema utilizado por eles e relatado para nós por aquele que durante 30 anos esteve à frente da gestão desse modelo educacional: o grupo natural e o papel do professor tutor.
O grupo natural
Em seu primeiro ano na escola, o aluno da Sunion passa por um longo processo de integração e de conhecimento sobre seus pares. Ao final, estará apto a identificar suas afinidades pessoais e escolher um grupo de trabalho com quem queira estar ao longo dos anos seguintes, os quais finalizam sua escolaridade básica obrigatória.
Cada ano escolar tem aproximadamente 120 alunos e, dessa forma, são compostos cerca de 16 grupos naturais que têm entre seis e oito participantes. O grupo natural (GN) se torna, portanto, a célula básica de identidade e pertencimento ao centro educativo.
Não há turmas, há apenas GN e cabe ao professor, em função de seu planejamento de trabalho, definir com quantos grupos naturais quer realizar cada situação de aprendizagem: 1 GN, 2, 4, 8 ou todos de uma vez. Essa decisão implica outra: a definição dos espaços que sejam compatíveis com a atividade planejada e com o número de GN convocados. Por isso, as salas de aula da Sunion não são iguais. Há os seminários que são classes com 12 metros quadrados, um mesão, 8 cadeiras e portas e paredes envidraçadas para garantir a transparência e a visão de todos os espaços de trabalho. Os seminários abrigam um GN em cada, e são organizados de modo que o prof possa acompanhar o trabalho de todos. Há salas em formato de U , adequadas para debates e salas com cadeiras individuais para estudos e avaliações.
Mas, se o professor optar por reunir os 120 estudantes de uma só vez, deverá escolher o saguão de entrada onde acontecem as reuniões e onde os 120 alunos de uma mesma série se reúnem uma vez por semana para… cantar! Conta o professor que quando os ex-alunos se reúnem para relembrar seus tempos de Sunion, a primeira coisa que querem fazer é ir para o saguão e cantar as músicas do repertório de sua série. Essa memória afetiva revela a importância da atividade para os alunos e alunas.
Além do incentivo ao trabalho em grupos por afinidades, a escola trabalha rigorosamente com compromissos individuais dentro de cada grupo natural. Neles, cada aluno se responsabiliza por ser monitor de uma disciplina e gestor de um dado serviço escolar.
Como monitores devem fazer o papel de porta vozes do grupo para o professor da disciplina tanto no que se refere a pedir explicações como fazer sugestões queixas ou negociações.
Distribuem tarefas, analisam as dificuldades, solicitam apoio, desafios ou diferenciações de conteúdos. para contemplar todos os membros do grupo.
Uma vez por mês, o professor se reúne com todos os monitores de sua disciplina para uma análise das atividades e dos processos de aprendizagens de cada grupo.
Como responsáveis por apoiar certos serviços da escola, aprendem técnicas variadas com os funcionários responsáveis e partilham da responsabilidade de servir a toda a comunidade. Podem estar apoiando a cozinheira no preparo do almoço, atendendo aos pais novos na secretaria ou montando um áudio visual para um professor. Em qualquer dessas situações, exercitam a responsabilidade sobre o trabalho e vivenciam situações de aprendizagem de procedimentos técnicos diversos. Por outro lado, todos os adultos que trabalham nesta escola têm a chance de exercer o papel de educador pois recebem os alunos para atividades educativas em suas áreas de atuação. Um tempo de aproximadamente 45 minutos semanais é dedicado a este tipo de atividade, mas uma vez por mês os alunos se responsabilizam também por limpar a escola: varrer, passar pano e retirar o lixo. A faxina profissional só entra na escola as 17 horas, quando se encerra o período escolar. A manutenção diária é, portanto, realizada pelos alunos, num rodízio que se insere na grade horária.
Essas responsabilidades compartilhadas num GN pode gerar desconfortos, frustrações e contrariedades no convívio com os colegas. Por essa razão, uma vez por mês se reúnem para sessões de autocrítica nas quais, mediado pelo professor tutor, avaliam o funcionamento do grupo e buscam ajustes e superações necessárias e desejáveis.
A perspectiva de formação para a autonomia vem aliada de modo concreto a um trabalho consistente com a construção da responsabilidade. Por outro lado, o trabalho coletivo dos adultos parece ganhar mais sentido e aderência à tarefa de educar.
Como se nota, o horário é flexível e montado semanalmente em função da demanda dos professores. Seu tempo global é definido antes, mas a forma de utilizá-lo é de sua responsabilidade, se vai dividir em tempos de 30 min ou 1 hora, se vai agrupar os alunos em dois ou três Grupos Naturais, e qual espaço escolar irá ocupar. Isso pressupõe uma equipe de professores altamente capacitada e responsável.
Professor tutor
Para que isso seja possível, o professor da Sunion tem dedicação integral e exclusiva à escola. Seu contrato de trabalho comporta 34 horas semanais, das quais 20 horas são dedicadas à sala de aula. As 14 horas suplementares são utilizadas para planejamento, elaboração de material didático, feedback para os alunos e, além de tudo isso, para a tutoria de ao menos 3 grupos naturais.
Não há orientadores ou coordenadores nesta escola. Há apenas a competente equipe de professores que, como tutores, devem acompanhar a vida escolar de seus alunos monitorando seu desenvolvimento, integração e bem estar, assim como o desenvolvimento de suas competências de acordo com os objetivos estabelecidos.
É o professor tutor quem faz a mediação de conflitos, atende as famílias quando necessário, e elabora intervenções especiais para aqueles alunos que necessitam de um encaminhamento específico.
De modo que não há como este professor reduzir sua vida profissional ao ensino estrito dos conteúdos de sua disciplina. Há forte trabalho coletivo e uma gestão participativa bastante evidente.
Cada professor tem seu pequeno gabinete de trabalho na escola, misturado aos ambientes destinados aos alunos, de modo que a presença do educador se estende por todos os corredores da escola.
O forte compromisso de cada educador com o projeto fortalece o trabalho coletivo, amplia as responsabilidades individuais sobre as ações pedagógicas e forja uma identidade única à escola. Não é à toa que nos últimos dez anos muitos educadores brasileiros de diversas escolas já estiveram lá para conferir tudo isso.
Que lições a Sunion nos ensina?
Evidentemente que nos ensina coisas distintas pois isso depende essencialmente de nossas crenças e de nosso momento profissional, mas sem dúvida evidencia para todos nós algumas ideias potentes, sobre as quais propomos a reflexão de todos:
- As (in) variáveis didáticas como tempo, agrupamento, espaços e materiais devem estar a serviço do planejamento do educador e visando sempre os melhores resultados de aprendizagem, e não o contrário.
- Mudar o mobiliário da escola, incluindo áreas de convívio com puffs coloridos e mesas coletivas, não é suficiente para garantir a inovação. As mudanças precisam ser sistêmicas e estarem ancoradas em princípios educacionais e pedagógicos sólidos e bem dominados por toda a equipe.
- O trabalho coletivo é fundamental numa instituição educacional e é preciso repensar sempre as melhores maneiras de promovê-lo verdadeiramente.
- O modelo pedagógico deve estar muito bem articulado aos valores da escola e que é preciso ter foco naquilo que é mais importante.
Para finalizar, quero agradecer publicamente ao professor Juan Puig que distribuiu seus conhecimentos generosamente a todos e que foi incansável nessa jornada em nosso país.